quarta-feira, 1 de julho de 2015

Danvers Blues

Com toda justiça tardia, Miss Marvel finalmente seria a estrela de uma nova edição do Coelhinhas. Essa prometia. Porém, esses planos terrenos foram adiados após uma revisitada incidental numa boa parte da sua cronologia.

Em tempos de feminismos demagógicos e contraditórios, em que os Manos Warner suam a camisa pra encaixar uma diretora no filme da Mulher-Maravilha e onde vemos manifestações dúbias como a Marcha das Vadias e bobagens como o Femen e o Teste Bechdel, a linha do tempo da Miss Marvel pode servir como um exemplo do quão pode dar errado uma personagem feminina sendo escrita por homens. Olhando em perspectiva tudo o que a heroína atravessou num período de três décadas, não tive dúvidas de que se trata de algo que não pode ser ignorado. Pelo contrário... é objeto de estudo.

"Play it, Sam".


Miss Marvel, Binária, Warbird, Capitã Marvel... Carol Danvers é a personagem mais trágica da Marvel. Não tem pra Jean Grey, Elektra Natchios, Wanda Maximoff ou Natasha Romanova. A trajetória de Carol é triste e dramática. Deprimente mesmo. E um exemplo surreal de tenacidade tanto para uma editora negligente quanto para seus leitores, inertes sob a eterna sombra mod de outra loira assombrada das HQs.

Muitos dizem que a Miss Marvel foi uma tentativa da Marvel de criar sua própria Mulher-Maravilha. Em termos de estética e apelo, a lógica parece irrefutável, mas em termos de planejamento editorial, a teoria vai pro espaço em velocidade warp.

Criada em 1968, Carol Danvers era pouco mais que uma damsel in distress para o Capitão Marvel. Descontinuada abruptamente no ano seguinte, ela foi mais uma que conheceu de perto o significado da expressão "depósito das ideias". Reapareceu apenas em 1977, mas com um belíssimo plano de carreira: agora ela seria uma super-heróina com título próprio e também a garota-propaganda da Marvel no apoio à luta pelos direitos das mulheres - e ver o J. Jonah Jameson assumindo o papel do machão chauvinista ainda hoje é impagável.


Com a carreira em franca ascensão, Chris Claremont assume o título na 3ª edição, levando o run até seu final, na 23ª - um cancelamento precoce e aparentemente de última hora, com a seção de cartas enfileirando promessas para a "próxima edição" que nunca veio. As ambições da Marvel-Maravilha ficaram suspensas até o século seguinte para que ela engrossasse as fileiras de uma das estrelas da casa: os Vingadores.

Dali em diante, a heroína passaria por uma vida de torturas indizíveis nas mãos de editores e roteiristas sádicos.

Durante toda sua fictícia existência, Carol enfrentou grandes perrengues pessoais, profissionais, espaciais e dimensionais, mas o período 1980-2000 leva o prêmio. Não sei o quanto daquilo foram tentativas de repaginá-la, o quanto foram deficiências de continuidade ou o quanto foi simplesmente um exercício de sexismo. O fato é que Carol passou por coisas que nem um personagem de The Walking Dead passaria.

E o episódio escabroso com Marcus, escrito por David Michelinie, pode ser considerado o round 1.


Marcus era filho do vilão Immortus (resumindo muito, o Kang de um futuro alternativo) e nasceu num limbo entre as dimensões. Para chegar à dimensão da Terra 616, o sujeito simplesmente impregnou a Miss Marvel para nascer nesse mundo. Resultado: Carol, recém-integrada aos Vingadores, sofreu uma gravidez de nove meses comprimida em três dias para dar a luz ao bebê Marcus. Este, após o nascimento, amadureceu igualmente em velocidade acelerada. No fim, ele acabou retornando ao limbo, mas levando consigo uma perdidamente apaixonada Miss Marvel!

Quem diria que aquele inofensivo papo na praia com a Feiticeira Escarlate resultaria num futuro negro tanto pra uma quanto pra outra?

Recapitulando então: Miss Marvel largou tudo para ser a mulher de um cara que ela acabou de dar a luz. Mas calma, que a porrada ainda não é essa.

Entra em cena mais uma vez Chris Claremont, que ficou bastante insatisfeito com os rumos da personagem. Talvez tentando remediar aquela bizarra situação enquanto justifica a atitude incoerente de sua ex-paladina liberal-feminista, o escritor deu uma inestimável contribuição à máxima "a emenda ficou pior que o soneto". Na solução apresentada por seu roteiro, Carol estava o tempo todo hipnotizada por Marcus - e não no sentido figurado.

Não tinha como ficar pior.

Em suma, Miss Marvel teve seu corpo brutalizado para ser barriga de aluguel e dar a luz a um sujeito que mais tarde a estupraria à revelia num limbo (!). Perto desse, o Doutor Luz fica parecendo um monge capuchinho.

E vamos ao round 2...


Carol eventualmente volta à Terra (seis meses depois), sem lenço, sem documento, sem Vingadores e sem maiores explicações. A recepção de boas-vindas fica por conta de Vampira, então uma vilã estreante das mais ameaçadoras, que comete contra ela um dos maiores crimes impunes da Marvel em todos os tempos.

Nesse ponto cabe algumas breves considerações sobre os efeitos desse acontecimento nos anos que se seguiriam:

1.0 - É sintomático que um dos momentos mais marcantes e icônicos da personagem, que reverberou tanto em outras mídias quanto em saudáveis atividades esportivas, não tenha sido mostrado na época. Originalmente, o ataque foi apenas mencionado no texto de Claremont - fato muito mal remendado 11 anos depois, com os cacos de um roteiro não-finalizado em uma história terrível. Pobre Carol, maltratada até pra sofrer.

1.1 - Irônico observar hoje o quanto isso alavancou a popularidade da então baranguíssima Vampira - promovida a heroína e até a sex symbol - e o quanto serviu pra enterrar ainda mais a carreira da outrora promissora Miss Marvel.

Após uma temporada em coma, sem memória e sem poderes, Carol recebe alguma reabilitação de Charles Xavier, mas fica com profundas sequelas, como a perda da ligação emocional com sua família e seus amigos. Incorporada aos X-Men, Carol teve pouco tempo pra curtir a mansão X: foi capturada pelos aliens da Ninhada e submetida a um violento procedimento de reestruturação genética. Iniciava ali a sua fase como a poderosa Binária. Mas poder ampliado é vendaval e ela logo se viu rebaixada ao nível da Cristal.

Pensando bem, esses são os rounds 2, 3 e 4 juris et de jure.

Na lona mais uma vez, inexplicavelmente, nossa super-heroína retorna aos Vingadores - os mesmos que davam tchauzinho enquanto ela ia embora com Marcus pro limbo. Velho uniforme, novo code: Warbird, em homenagem aos caças norte-americanos da 2ª Guerra (seus favoritos). Na troca de mansões, Carol leva de brinde um lindo bar com uma farta adega - o que é no mínimo arriscado, visto que um dos frequentadores do lugar é um feliz entusiasta de tais apetrechos.

Após tanta pancada no céu, na terra e até no limbo, não é surpresa a natureza do próximo round: 

Alcooooolismoooo!

Carol mergulha de cabeça numa interminável espiral etílica, dando início a uma de suas fases mais sombrias. Apesar das várias tentativas de ajuda de Tony Stark (num retrato angustiante, mas bem realista do estado de sobriedade), a negação mostra que é mesmo a maior inimiga do autocontrole.

Alcoolismo is a bitch.

A paranoia com suas oscilações de poder, as visitas furtivas ao barzinho da mansão e o desespero em provar seu valor formam uma combinação desastrosa. Carol não resiste nem a uma enxugada numa aguardente kree durante uma missão na qual só o que estava em jogo era o destino da Terra. De bônus, quase mata o Dentinho.

O resultado veio rápido e fulminante.


Esse foi o lead da minissaga Vingadores versus Krees, de Kurt Busiek e George Pérez. A sequência do confronto final entre os heróis e um grupo terrorista kree é de tirar o fôlego, como é de se esperar vindo da clássica dupla. Com a conhecida explosão de detalhes e a dinâmica frenética de um embate épico, essa foi uma das grandes batalhas dos Vingadores.

O que mais me marcou, contudo, foram as breves intervenções de Carol, inseridas em meio às heróicas cenas de ação. São alguns dos momentos mais cruéis e impiedosamente tocantes que já li num gibi.

Ao contrário de seus ex-colegas de equipe, lá estava uma Miss Marvel impotente, solitária e refém de si mesma, protagonizando uma das lutas mais perdidas das HQs.




Literalmente o fundo do poço - ou do beco - pra quem ficava zigue-zagueando galáxia afora em seus tempos de Binária. A incomum escolha para a condução da aventura também serviu sob medida para o seu desfecho.

Mas o que seria uma saída fácil para os problemas de Carol não se configura - felizmente, do ponto de vista narrativo. Afinal estamos falando de dependência alcoólica aqui. Não existem saídas fáceis, tampouco individuais. Portanto, ainda acompanhamos a Miss Marvel e seu probleminha crônico se esgueirando por mais algumas edições, dessa vez no título solo do Homem de Ferro - quem mais?

Sem dúvida nenhuma, com grandes traumas vêm grandes responsabilidades. O círculo finalmente é fechado, dignamente e com acerto de contas. E principalmente, marca o fim de uma longa e dolorosa via crucis percorrida pela heroína.

* * * * * * 

Às vezes a Marvel escreve errado por linhas tortas. O porquê disso tudo ter ocorrido com uma personagem com evidente potencial pop é, para mim, um mistério. Fico feliz em ver que não sou o único a se horrorizar com a caótica trajetória de Carol. E fico ainda mais feliz pelo seu rehab editorial. Claro, ela enfrentou alguns problemas sérios depois disso, mas nada desmerecedor de sua importância conceitual.

Atualmente, recém-saída de um bom run escrito por Kelly Sue DeConnick, a heroína trocou mais uma vez de codinome (Capitã Marvel, em homenagem ao saudoso Mar-Vell), cedendo seu antigo Ms. Marvel para a aclamada série da Kamala Khan e sendo enfim tratada como deveria.

Nada mais justo para uma personagem que sobreviveu tantos anos sob o fogo cerrado de seu maior e mais insidioso inimigo, tão bem metaforizado naquela profética edição #21 de sua primeira série solo.


'Nuff said, girl!


Direto das caixas do tempo dos gibis:
Edições GEP #21 - Sensacional o Nôvo Capitão Marvel (1970)
Heróis da TV #3 (setembro de 1979)
Grandes Heróis Marvel #17 (1ª série, setembro de 1987)
Heróis da TV #100 (outubro de 1987)
Superaventuras Marvel #64 (outubro de 1987)
Superaventuras Marvel #69 (março de 1988)
Marvel 2000 #3 (março de 2000)
Grandes Heróis Marvel #6 (2ª série, julho de 2000)
Homem-Aranha #17 (Super-Heróis Premium, dezembro de 2001)

Ps: a Editora Salvat irá publicar nos volumes de capa vermelha as primeiras histórias de Carol na fase DeConnick, além de suas primeiras aventuras solo da Era de Bronze. Já estou no aguardo ansiosamente.

2 comentários:

Luiz Gustavo de Sá disse...

Conheço essa sensação... quando tu clicas em "publicar" e parece que, propositalmente, acabas libertando um monstrinho que estava já há algum tempo entranhado na sua garganta. A sensação é libertadora e, cá entre nós, boa para alma. Danvers Blues é inspiração e expiração, meu amigo. Muita vivacidade e um senhor trabalho de campo, coletando dezenas de excertos. Se não estiver com uma bela rinite alérgica agora, me diz aí, por favor, qual é o segredo do seu sucesso.

Conhecia alguns desses capítulos da biografia da Carol, mas não o quadro geral. O lance do estupro no limbo foii um resgate psíquico qualquer coisa de genial. O que, por sinal, me fez ponderar sobre a trajetória de outra marvete complicada e perfeitinha, a Sra. Cage. Sério? Vai dizer que não chega a ser tentador usar aquela palavrinha que começa com "P", ainda mais quando passa a fazer sentido a amizade incondicional de Jessica e Miss Marvel ao longo de Alias?!

Outra, quase caiu um cisco aqui com as páginas do Senhor Golden. Vendo em retrospectiva e com essa coleção de clássicos saindo nas bancas para ajudar, dá para se mensurar, entre altos e baixos, o quão afortunada é a Marvel por respeitar sua história, inclusive às vésperas de um relançamento massivo capitaneado por um autor (Jon Hickman) que vem honrando o legado cronológico da casa.

Por fim, só posso agradecê-lo por um artigo assim. Merece uma Sul Americana para acompanhar!



doggma disse...

Realmente, meu amigo, foi uma catarse. Quase sempre é, na verdade. Qual o sentido, a diversão, de fazer de outra forma, não é mesmo?

Toda a atenção que a personagem veio recebendo nos últimos tempos - com a recém-finalizada fase DeConnick, a mudança (controversa) para um uniforme menos sexista e um codinome mais solene - me parece um esforço honesto da Marvel para corrigir uma sequência de erros histórica. O timing certamente já foi, mas talvez seja até melhor do que ver a Miss Marvel virando a rainha da era Image das HQs e dando vazão àquela "palavrinha" depois de tudo.

De fato muito curiosa a relação entre Jessica e Carol - que, de outra maneira, jamais teriam qualquer afinidade. Mas a sequência que ficou pra mim foi a das Jessicas (Jones & Drew) saindo pra chutar algumas bundas à paisana. O Bendis sabe...

Em termos de cronologia, os leitores da Marvel não têm o que reclamar não (tirado uma ou outra "mágica", geralmente em cima do pobre Aranha). Pelo menos em comparação com a DC, que saiu dos trilhos nesse mérito há muito tempo.

E vamos ver se o Hickman vai justificar o hype. De onde esse cara veio, por sinal?

Ps: a alergia vai bem, obrigado! Só uma Sul Americana pra curar mesmo, heh