sexta-feira, 19 de abril de 2024

90 centímetros a mil


Nelson Ned não tinha 90 centímetros. Tinha 1 metro e 12. Isso não impediu a gravadora de tascar a marca fake em seu disco de estreia, Um Show de Noventa Centímetros, de 1964, por questões marketeiras. Está tudo bem explicado na bio Tudo Passará: A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção (Companhia das Letras, 2023), escrita pelo jornalista André Barcinski.

Bio, aliás, que anda fazendo mais barulho que o próprio Barulho. Merecido.

Querendo ou não, cresci ouvindo Nelson Ned. Nada de rock americano ou pós-punk inglês lá em casa, apenas a fina flor das paradas AM: trilhas de novelas, compactos e elepês de Roberto Carlos, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Clara Nunes, Nelson Gonçalves, Sérgio Reis. De artistas internacionais, dá-lhe Ray Conniff e italianos como Peppino di Capri, Sergio Endrigo e Nico Fidenco. E havia o Eu Também Sou Sentimental, então, para mim, um muito curioso disco de 1970.

a capa já me deixava fascinado, com o Nelson sentado num banco, fotografado de corpo inteiro (raridade). Nunca havia visto alguém com nanismo, quanto mais um cantor com nanismo. Era desconcertante ouvir aquele artista pequenino com um vozeirão tão imponente. Era mágico até.


Na fauna midiática popularesca do Brasil dos anos 1970-1980, Nelson Ned era um paradoxo. Surgia num Chacrinha aqui, num Raul Gil ali, num Silvio Santos acolá e sumia. Parecia muito ocupado, pois seguia no topo da forma vocal e não parava de lançar discos.

Tínhamos certa noção do sucesso dele lá fora, mas não fazíamos ideia do tamanho desse sucesso. Um pouco pela barreira cultural que separa o Brasil dos demais países da América do Sul e muito pela má vontade da imprensa brasileira com a obra do Nelson. Não havia informações, excetuando algumas poucas matérias em programas de variedades. E mesmo assim nenhuma dava a dimensão exata.

Tudo Passará traz justiça à jornada de superação de Nelson Ned e à sua carreira única no estrelato mundial. Mais ainda, faz uma reparação histórica do jornalismo musical brasileiro com o cantor. Espero sinceramente que não acabe por aí.

O texto de Barcinski tem uma dinâmica ágil e bastante visual. Serve perfeitamente como base para o roteiro de um filme – ou de uma minissérie da Netflix ou da Globoplay, quem sabe? A tocante sequência de abertura, mostrando os bastidores de um show do Nelson do ponto de vista do baterista Raymundo Vigna, é para ler chorando e fazendo o enquadramento da cena com as mãos.

Essa sensação acompanha a maior parte da leitura como uma opção narrativa eficiente e instigante, jamais de maneira apelativa.


O livro cobre desde as suas origens humildes em Ubá, na Zona da Mata Mineira, e as primeiras incursões em carros de som e programas de rádio até o avassalador sucesso na América Latina e na África lusófona. E, claro, também traz toda a bagagem hardcore de sexo, drogas e violência que o próprio Nelson, já evangélico, não se furtava em confessar em entrevistas.

Esse é outro aspecto que também não tínhamos ideia do tamanho da encrenca. Tudo é esmiuçado em detalhes de empalidecer até o Keith Richards. Nelson Ned não era brinquedo.

A bio contou com o precioso apoio e colaboração da família de Nelson, aparentemente sem restrições. Algo que não se vê muito por aí, infelizmente.

Uma dica aos aventureiros é deixar as orelhas e o ótimo texto do Marcelo Rubens Paiva na contracapa para leitura posterior. Preservar as surpresas da experiência foi tão bom que até evito – com muito esforço! – comentar aqui sobre as situações cabulosas e as figuras improváveis que pipocaram na trajetória do Nelson. O livro merece. E o leitor, mais ainda.

De ruim, é justamente o tamanho (sem trocadilho): apenas 256 páginas que passam rápido demais. Menos que as imersões de Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia e do 50 Anos a Mil, do Lobão – em contrapartida, é bem mais fluído e sem a prolixidade, por exemplo, de Chacrinha: A Biografia. Provavelmente, mais uma opção de abordagem.

O importante é que agora finalmente há um registro oficial para esta história inacreditável. E bota inacreditável nisso.


Coisa que o próprio Nelson Ned tinha consciência há tempos.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Deus, o Diabo e a Criterion na Terra do Sol


Aquele negócio... o mercado de home video físico foi pro vinagre há tempos e hoje segue de forma extremamente segmentada. No caso, no segmento dos cinéfilos colecionistas, que até toleram a realidade do streaming, mas não abrem mão de seus clássicos reluzindo na estante.

E Black God, White Devil – o nosso Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964 – não é qualquer clássico: é o grande clássico do Glauber Rocha. Sim, sim, um marco do Cinema Novo, da contracultura canarinho e por aí vai, mas é simplesmente um filmaço.

A nova versão foi remasterizada em 4K pela cineasta e pesquisadora Paloma Rocha (filha do homem), que vem trampando arduamente no projeto. O blu-ray é duplo e traz toneladas de extras, incluindo documentários e entrevistas.

E, diabos, sairá pela Criterion®! Isso é algo para se orgulhar enquanto espécie.

Lançamento previsto para julho, há exatos 60 anos da estreia!

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A Lenda de Trina Robbins


Trina Robbins
(1938 - 2024)

Se foi a pioneira Trina Robbins. Este mês não está fácil. E nem chegamos na metade.

Nascida Trina Perlson, depois Trina Castillo (do ex Art), depois Trina Petit (pseudônimo) e finalmente Trina Robbins (do ex Paul Jay), ela teve uma trajetória que beirou o surreal. Estilista, modelo, quadrinista, pesquisadora, escritora e ativista, também foi figurinha tarimbada na cena psicodélica americana dos anos 60. Amiga próxima de Jim Morrison e do pessoal do The Byrds, foi homenageada por Joni Mitchell na música “Ladies of the Canyon”. É pouco?

Sua vida se confunde com a própria evolução da cultura pop underground moderna e do papel das mulheres dentro da indústria dos comics. Renderia fácil um livro ou uma série.

Sua carreira começou ainda na adolescência, quando escrevia e desenhava para fanzines. Era o iniciozinho da década de 1950. Com o passar dos anos, chegou a posar para a capa de algumas dessas publicações – o que abriu caminho para alguns trabalhos como modelo pin-up para revistas masculinas até o começo da década seguinte.

Na mesma época, ela integrou a gênese do Underground Comix, sendo uma das poucas mulheres envolvidas no cultuado movimento. Produziu muito material durante os anos 60/70, mergulhando de cabeça nas causas feministas e advogando pelo espaço das mulheres num mercado quase totalmente masculino. É dela a primeira tirinha lésbica já registrada, Sandy Comes Out, publicada na Wimmen's Comix #1 de novembro de 1972.

Robbins nunca foi de fazer média e esculachava sem dó inclusive companheiros de underground. Nem a misoginia satírica de Robert Crumb escapava: “É estranho para mim como as pessoas estão dispostas a ignorar a horrível escuridão do trabalho de Crumb... O que diabos há de engraçado em estupro e assassinato?”

Outro que levou uma trauletada de luxo foi o nosso Mike Deodato. Robbins classificou a Mulher-Maravilha que ele desenhou nos anos 90 como uma “pinup hipersexualizada quase nua.”

Errada não está... tenho as edições e é realmente impagável de tão apelativo. Em contrapartida, ela é a co-criadora da Vampirella e a designer da sua aparência, digamos, hipersexualizada e quase nua.

Outra marca história conquistada por Robbins diz respeito justamente à princesa de Themyscira: em 1985, ela se tornou a 1ª artista feminina a desenhar a Mulher-Maravilha desde a sua criação em 1941. E só levou 44 anos.

Entre trabalhos para a DC, Marvel, Eclipse, Star e outras, passou a se dedicar à pesquisa da História dos Quadrinhos com foco na participação das mulheres no segmento. Isto porque, segundo ela, todos os demais pesquisadores “só queriam saber de Stan Lee e Jack Kirby.”

Em 1985, publicou seu 1º livro, Women and the Comics (inédito por aqui), em parceria com Catherine Yronwode. E não parou mais – sua bibliografia de não-ficção é extensa.

Trina era casada com o veterano quadrinista Steve Leialoha. Ao contrário dele, infelizmente, ela foi pouquíssimo publicada por aqui.

Parece que foi ontem que a mencionei no post de despedida da Ramona Fradon, numa lista com as maiores precursoras das mulheres nos quadrinhos. Pesquisar e escrever sobre Trina é apaixonante, mas parece não haver final à vista. Ela foi demais para uma vida só.

E sim, nos áureos tempos também foi um tremendo brotinho, mora?

Que mulher.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Mad MaXXXine

A trilogia X do cineasta Ti West e sua musa Mia Goth chega ao fim (?) nos loucos anos 80. Lógico.


"Obsession", do Animotion, a versão do clássico das boates "Self Control", da Laura Branigan... só na trilha já deu pra perceber que o filme foi embebido na década dos excessos. A cenografia é estonteante e a sinopse é digna de qualquer contracapa de VHS da CIC Video, Top Tape ou Look Vídeo:
“Na Hollywood dos anos 1980, a estrela de filmes adultos e aspirante a atriz Maxine Minx finalmente tem a sua grande chance. Mas enquanto um misterioso assassino persegue as estrelas de Hollywood, um rastro de sangue ameaça revelar seu passado sinistro.”
Recapitulando, X, de 2022, é um divertido slasher mezzo paródico mezzo fora da curva. Mia Goth – neta da veterana global Maria Gladys – brilha em papel duplo. O prequel Pearl, do mesmo ano, é ainda melhor. Direção, atmosfera, texto e Goth em seu auge performático. Um filmaço.

Se MaXXXine simplesmente seguir no piloto automático, já está no lucro. Mas a gringa brasileira vende bem o peixe:

“É o melhor roteiro dos três, de longe. Será o melhor filme dos três.”

Curiosamente, a trilogia não tem causado muito burburinho no Brasil. Talvez porque muitos miguxos resenhistas têm um ranço enorme das produções do estúdio A24. Don't believe the hate. Ao menos neste caso.

MaXXXine estreia 5 de julho nos EUA. Por aqui, nem sinal ainda. Seja como for, a maratona já me aguarda...

sábado, 6 de abril de 2024

Obrigado por tudo, Cientista Maluquinho!


Ziraldo Alves Pinto
(1932 - 2024)

Lembro vividamente. Acho que é uma daquelas coisas. Tinha algo entre 6 e 7 anos. Local, a quermesse junina da igrejinha do bairro, que existe até hoje – muito maior e mais bonitona, mas sem aquele charme comunitário de outrora. Era sempre um evento.

Então, estava lá eu tentando a sorte na barraquinha da pescaria (afinal, quem sabe não viria um Falcon?), mas o que acabei pescando foi algo muito menos impactante à 1º vista...


...porém infinitamente mais impactante para a minha vida. A Turma do Pererê Vol. 1 foi, de longe, o quadrinho que mais reli naqueles anos. Eu simplesmente não largava a edição.

E essa foi a minha apresentação oficial à obra do homem. Festejando no meio da molecada, das brincadeiras, na quermesse da igreja. Mais Ziraldo, impossível.

O livro – uma bela edição (de 3) em capa dura pela editora Primor!, aprovadíssima pelo MEC milico – não resistiu às rebordosas da minha infância e adolescência, infelizmente. Mas já era tarde demais: o amor pela arte do Ziraldão já havia me conquistado e seguiu inabalável.

Dizer que Ziraldo foi um mestre dos quadrinhos infantojuvenis é pleonasmo. Seu próprio nome já é indissociável do conceito. E, claro, ele foi muito mais do que isso. O que só fui entender mais tarde, com a idade. Desta forma, nunca parei de redescobrir seu trabalho. Acho que é um daqueles gênios.

Não sou dado a ufanismos, mas olha... como é bom o Ziraldo ter nascido brasileiro. Provavelmente só assim ele seria o Ziraldo.

Vai fazer muita falta esse Cientista Maluquinho.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Para os que ficam


Edward R. Piskor Jr.
(1982 - 2024)

Se foi o Ed Piskor. Voluntariamente. Com apenas 41 anos.

Descrever a rápida saga que levou à sua implosão profissional e pessoal é exaustivo só de pensar a respeito. O jornalista, escritor e tradutor Érico Assis montou um fio compreensivo e prático.

Li alguns trechos da carta de despedida. Só consegui ver ressentimento, instabilidade e imaturidade. Talvez com razão – talvez não. Muito ainda será discutido a respeito e termos como cultura do cancelamento, tribunal da internet, saúde mental, vitimização e/ou culpabilidade da vítima serão atirados no ventilador com toda a força.

A repercussão desse caso ainda vai durar um bom tempo no escrutínio público. E não poderia ter vindo em pior hora para alguns ex-queimados estão ensaiando um retorno à cena. A verdade é que ninguém sabe ainda como fazer isso direito. Piskor não soube.

comentei aqui: adorava o Cartoonist Kayfabe que ele dividia com o ex-amigo Jim Rugg. E considero Hip Hop Genealogia e X-Men: Grand Design alguns dos quadrinhos mais importantes das últimas décadas. Mas estaria mentindo se afirmasse que, para mim, a fruição dessas obras não sofreu um baque com as escolhas de vida (e de morte) do autor. Como tantos outros antes dele e, temo, depois também.

Da mesma forma, também não sei o que fazer sobre isso. Não ter controle sobre uma situação é foda.

Descansa em paz aí, Ed Piskor.

domingo, 24 de março de 2024

Báthory Bloody Báthory


Quando Erzsébet foi publicado pela Zarabatana Books em 2017, o editorial tratou de conferir uma aura de mistério em torno do autor. Comercialmente falando, uma malandragem pro. Mas, de fato, pouca coisa se sabia sobre Nunsky. Apenas que ele era do norte de Portugal, cantava numa banda psychobilly (The ID's) e exercitava seu lado quadrinista muito sazonalmente em zines e autorais underground. Ou seja, uma figura quase tão obscura quanto o BZ. Mas o "mistério" não durou muito tempo.

Hoje, sabemos que seu alter-ego é Cláudio Roberto Martini (quem?!), que mantém uma conta no Facebook onde posta tirinhas e projetos (quase) regularmente e que, sem dúvida, Erzsébet é a sua obra mais ambiciosa e fascinante até aqui.

A proposta da HQ é montar uma espécie de biografia livre da Condessa Elizabeth Báthory de EcsedBáthori Erzsébet, em seu húngaro nativo. Apesar de ser uma figura histórica bastante conhecida, ela contabiliza poucas bios, entre elas os filmes Condessa de Sangue, de 2008, com a ótima Anna Friel, e A Condessa, de 2009, dirigido e protagonizado pela Julie Delpy, além da BD francesa A Condessa Vermelha - Erzsébet Bàthory, publicada aqui em 1987 pela Martins Fontes.

Todas elas versões de autor, com toda a liberdade criativa e acuracidade histórica irregular que se espera. Em Erzsébet não é diferente, mas é das mais intrigantes. Capturar a vida e obra da Condessa Vermelha é um trampo capcioso. Mas temos lá o mythos que cruzou séculos rumo à eternidade e que Nunsky usa como mapa.



Elizabeth Báthory (1560-1614) é uma nobre de uma poderosa família dona de vastas propriedades no Reino da Hungria, onde exerce uma profunda influência política e militar. Bem educada e criada sob os rigores do calvinismo protestante, a jovem Elizabeth sofre com enxaquecas e crises de epilepsia. Se casa aos 15 anos com o Conde Ferenc II Nádasdy – um arranjo político que faz das duas famílias praticamente as donas da Transilvânia e da Hungria. Nádasdy logo assume o comando do exército e entra em guerra com os Otomanos (sempre eles!). As campanhas duram meses, o casal pouco se vê depois disso.

Durante os períodos de solidão, vagando pelo castelo sob a marcação de sua sogra religiosa e severa, Elizabeth desaba em uma espiral de insanidade. O que começa com crueldades imprevisíveis e gratuitas contra os criados, assume contornos psicopáticos, com a condessa arrancando nacos de carne e sorvendo o sangue de suas vítimas. Se o Leste Europeu não fosse entupido de lendas Strigoi, diria que o Bram Stoker (1847-1912) se inspirou muito ali. Mas a coisa escala mesmo após a morte de Ferenc.

Buscando a juventude eterna, Elizabeth passa a se banhar em sangue humano. A fonte: jovens virgens filhas de plebeus camponeses, considerados cidadãos de 5ª classe pela aristocracia. Fora de suas famílias, ninguém daria falta e/ou se importaria com elas. E começa uma orgia sem limites de carnificina e sangue que contabiliza mais de 650 vítimas.

Eventualmente, a condessa acaba se deparando com escassez de matéria-prima – afinal, após tantos sumiços, os vilarejos passam a evitar o castelo e seu entorno – e ela se vê obrigada a buscar seus insumos nas jovens da nobreza. E é aí que as autoridades começam a se importar.

Elizabeth é pega com a boca na botija (ou na artéria) durante uma revista feita em seu castelo por György Thurzó, Grão-Paladino da Hungria e também o seu primo. Talvez por isso, e pelo brasão de sua família, tenha escapado da fogueira. Elizabeth é julgada e condenada ao confinamento em um quarto selado com blocos, onde permanece até a sua morte, três anos depois.

Fim da história, início da lenda.



A composição estética é o aspecto mais poderoso da narrativa de Nunsky. O release propõe uma cruza entre os estilos de Charles Burns e Jaime Hernandez, no que concordo mais ou menos. Tem muito mais ali das artes medievais, povoadas por figuras chapadas e rígidas – com o diferencial da perspectiva, inexistente nas gravuras clássicas. O quadrinista aplica essa característica de forma sagaz, construindo várias passagens mortificantemente silenciosas que dispensam descrições textuais, mesmo com grandes quantidades de informação atreladas. Ele confia plenamente em sua capacidade gráfica e, mais ainda, na capacidade intuitiva do leitor.

Fora que isso deixa tudo mais macabro e perturbador. Afinal, se estabelece ali uma conexão psicológica quadrinho-leitor que não deveria nem existir em uma mente sã e pura. Viva?

Na HQ, Nunsky veste a camisa do thriller, do terror gótico, o que faz primorosamente. No que tange ao contexto e ambientação da bio, porém, o autor opta por uma leitura mais enxuta. As extensas ramificações da família Báthory e o complexo cenário sociopolítico da região (algo como um Game of Thrones on crack) são explorados apenas superficialmente. Elizabeth teve cinco herdeiros, sendo 3 filhas e 2 filhos. Todas figuras históricas relevantes da época. Isso sem contar os dois filhos não confirmados – um deles com um plebeu, inclusive, quando ela tinha 13 anos. O quadrinho suprime esses fatos, registrando apenas um parto.

Um detalhe curioso sugerido em Erzsébet é que o comportamento doentio da condessa começa exatamente após uma de suas violentas enxaquecas. Não sei se chega a ser uma sugestão de gatilho para suas atrocidades posteriores, mas o fato é que ela não volta mais a sofrer com as dores. Teria sido ali o ponto zero de uma mente enferma?

Uma especulação que parece um grão de areia na praia dessa história.


Hoje, é sabido que havia muito mais por trás da lenda da Condessa Sanguinária. Por exemplo, os 300 depoimentos colhidos para seu julgamento, que ainda constam no Arquivo Nacional Húngaro, são de pessoas que apenas ouviram falar das mortes. Seus quatro servos que supostamente a ajudaram, confessaram os crimes sob tortura – e foram rapidamente para a fogueira após as confissões.

A quantidade de terras, castelos e bens acumulada pela família Báthory era incomparável. E ficou ainda mais concentrada após a morte de Ferenc, o que teria desagradado os aristocratas do reino. Alguns deles, inclusive da Corte da Habsburg, deviam somas vultosas aos Báthory. Fora isso, ainda havia conflitos de interesses entre seus filhos, netos e outras casas influentes (lembra das maquinações Game-of-Thrônicas?). Elizabeth virou um alvo fácil.

Aliás, o famoso carro-chefe da lenda – os banhos de sangue para preservar a sua juventude – foi mencionado pela 1ª vez apenas em 1729, pelo jesuíta László Turóczi. Mais de um século depois.

Elizabeth Báthory pode ter sido uma das assassinas mais cruéis da História. Ou vítima de um dos assassinatos morais mais cruéis da História.

terça-feira, 19 de março de 2024

Entrevista com o Diabo

Nada como um programinha leve e descontraído antes de dormir...


Cabuloso.

Late Night with the Devil nem saiu em circuito comercial e vem sendo considerado uma das grandes apostas do gênero neste ano. Stephen King já assistiu e adorou. Mesmo com o hype, err, infernal, o trailer eletrizante mostra que o filme não vem pra brincar. Alta octanagem que chama?

O longa foi escrito e dirigido pelos manos aussies Colin e Cameron Cairnestudo indica que na Austrália agora é obrigatório que todo filme de terror seja dirigido por uma dupla de irmãos. Na premissa, situada em 1977, um show de variedades genérico escala uma menininha possuída entre as atrações. O problema é que a coisa é séria mesmo e logo o programa ao vivo vira um... pandemônio.

A convergência entre os temas é providencial, já que em meados daquela década parece ter havido mesmo um boom demoníaco nas mídias de massa. Programas de tevê, músicas, livros, artigos de revistas e jornais, todos pareciam interessados no que o cramulhão tinha a dizer. Talvez um efeito do pessimismo generalizado impulsionado pelas sucessivas crises econômicas – incluindo aí uma certa Crise do Petróleo de 1973 – aliado ao sentimento amargo pós-Vietnã e ainda o imenso impacto popular de O Exorcista.

Por sinal, uma sequência memorável da subestimada série de 2016 era justamente com a jovem protagonista figurando num desses talk shows dos 70's.

Também será a chance de ver o ótimo David Dastmalchian no papel principal, pra variar. Nos últimos anos, o ator esteve em vários hits do cinemão hollywoodiano, de Duna a Oppenheimer, sempre como coadjuvante. Ele é um exímio ladrão de cenas, como visto em Esquadrão Suicida e em sua estreia nas telonas, em Batman: O Cavaleiro das Trevas – ofuscando Christian Bale sem uma fala sequer.

De cara, dá pra ver que a direção de arte é sensacional, evocando a estética dos late shows clássicos dos anos 1970, tipo Dick Cavett e Johnny Carson. Esmero do Shudder que fica parecendo até produção do A24. Esse cuidado se estende ao pôster retrô, que parece saído da vitrine de algum cinema de rua das antigas.


Bons tempos.

Late Night with the Devil estreia nos cinemas lá fora no dia 22 próximo. E no Brasil, só no dia 22 de agosto (!!). Mas não tema, pois em 19 de abril já estará disponível no Shudder. 😈

E agora... Nossos comerciais, por favor! ®️

Dica do Sandro Sem Link 666.

sábado, 16 de março de 2024

Au revoir, Feng Shui

Quando você dá um tapinha no visual da estante e só depois da arrumação se dá conta que ela estava daquele jeito para otimizar espaço.


Nunca subestime seu eu do passado.

Ps: coloquei tudo de volta, mas aqueles 5 minutos foram mágicos. Meus chakras brilharam que nem Las Vegas.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Uma gata perfeita

Olhei o descontinho de 42%, respirei fundo e fui.


Mulher-Gato por Ed Brubaker parecia inatingível e, mesmo assim, inevitável. Só conhecia os dois primeiros arcos, publicados pela Panini em Mulher-Gato: Um Crime Perfeito, e já tinha achado o melhor material que li da Selina. Coisas que só a dupla Ed BrubakerDarwyn Cooke faz por você.

Isso foi em 2008. Os tempos mudaram. E os preços também.

Desta vez, a fase está completa e trazendo um selecionado que vai de Mike Allred e Javier Pulido a Sean Phillips e Paul Gulacy. O irônico é que durante muito tempo, achava que o TPBzinho único cobria todo o material... Ignorance is bliss.

Mas que TPBzinho maravilhoso foi aquele.


Tal qual a anti-heroína, a edição era um charme: capa cartão com orelhas e reserva de verniz, papel couché, extras com capas originais, bios e pequenos mimos com informações. Um trampo editorial caprichado do Oggh.

Mesmo após 15 anos, o gibi nunca saiu do alcance da mão. Já o Omnibus-calhamaço de 1080 páginas não consegui nem levantar para a foto.


Na época, deve ter vendido meia dúzia de exemplares. Uma pena. Preferia mil vezes que o run fosse serializado assim.

sexta-feira, 8 de março de 2024

とりあえずさよなら鳥山 !!


Akira Toriyama
(1955 - 2024)

Hoje, meio-mundo acordou tomando susto: se foi o Akira Toriyama. Novo ainda, só seis ponto oito. Ao que consta, o fato se deu no dia 1º e só agora a notícia foi divulgada pelo seu estúdio. Notável. Os japoneses sabem ser discretos.

Desnecessário, mas obrigatório comentar que Toriyama foi um gigante do entretenimento. Sozinho, era um dos maiores expoentes comerciais de mangás, animês e games do mundo. Aquele net worth de US$ 55 mi estimado pelo CBR? Balela. Que um raio me parta se a coisa não passa do 1 bi, fácil. Metade disso só de licenciamentos. Neste exato momento, a notícia varre o globo furando bolhas e nichos como pouquíssimos nomes ligados aos quadrinhos seriam capazes.

Meu contato com a obra do mangaká se resume ao genial Dr. Slump e à brilhante primeira fase de Dragon Ball. E quanto ao estouradaço e quilométrico animê, assisti e reassisti tudo até o GT – que não contou com a participação do homem. Pois é, fui mais um dos abnegados que aguardavam episódios e episódios a fio até Goku chegar de algum lugar distante para arrebentar a fuça do vilão e salvar a pátria.

Teve seus problemas? Teve. Mas Akira Toriyama foi grande.

Bom, talvez não tão grande, mas com certeza garantiu um capítulo só seu lá naquele livro...

segunda-feira, 4 de março de 2024

“Celebrando a vida através da morte”


Foi um início disputado aquele da revista Superamigos, da Abril. Os Novos Titãs de Marv Wolfman e George Pérez, o Esquadrão Atari de Gerry Conway e José Luis García-López, o Batman de Steve Englehart e Marshall Rogers, o Guerreiro de Mike Grell e outros menos cotados. E entre esses menos cotados, um dos quadrinhos que mais me impactaram naqueles tempos de gibizeiro de várzea: o Arqueiro Verde de Mike W. Barr e Trevor Von Eeden. Foi meu primeiro contato com o personagem.

A minissérie em 4 partes foi publicada em Superamigos #6-9 (out/1985 – jan/1986). Saiu lá fora pouco antes, em 1983 e marcava a reestreia do vigilante RobinHoodiano após sua parceria com o Lanterna Verde na histórica fase Denny O'Neil/Neal Adams – talvez o símbolo máximo da Era de Bronze da DC.

Por incrível que pareça, foi a 1ª vez que o Arqueiro ganhava um título próprio desde a sua criação, em 1941. Por tudo isso, poderia ter se tornado um ponto de referência na cronologia do herói e também dos comics da época. Mas, pelo contrário, rapidamente submergiu numa quase total obscuridade. A HQ é pouco comentada por aí e nunca sequer foi compilada pela DC. E olha que eles compilam tudo.

Parte disso, provavelmente, se deve ao lançamento de Ronin na mesma época e do Monstro do Pântano de Alan Moore dali a cinco meses, eclipsando o que quer que fosse àquela altura. Mas não só. Revisitando mais uma vez as edições, saltam aos olhos as perspectivas ousadas, pero herméticas, de Barr e Von Eeden.

É um quadrinho fácil que não se vende fácil.


Na trama, Oliver Queen é convidado para a leitura do testamento de Abgail "Abby" Horton, uma velha amiga de seus tempos de garotão playboy. Para surpresa da família, Abby deixa quase toda a sua fortuna para Ollie, além do controle acionário de seu império, a Horton Química. E para surpresa de ninguém, ele começa a sofrer uma série de atentados, inclusive com a participação de supervilões contratados.

Relutante a princípio, Ollie decide assumir a presidência da empresa para investigar de perto a morte de Abby e o possível envolvimento de seus suspeitíssimos filhos, genro e irmão. Como esperado, acaba descobrindo que existe algo de podre no reino dos Horton.

Se a premissa básica gira entre um novelão do Gilberto Braga e um thriller de Supercine, ela também tece um cenário perfeito para ilustrar a relação entre Ollie e Abby. É uma amizade genuína, doce e bonita de ver, mesmo que em breves flashbacks. Ao mesmo tempo, é a deixa para o roteiro explorar o homem por trás da máscara.

Na verdade, esse é o alvo principal de Barr durante a mini: o próprio Oliver Queen.


Oliver Queen em dia de Frank Castle... pobre Conde Vertigo

Ao levar o Caçador Esmeralda a uma cruzada pessoal, o escritor atualiza seu papel dentro de seu próprio mythos, agora um tanto afastado das ideologias e causas sociais. Há uma ou outra observação sobre a ineficiência do sistema carcerário, um relance solitário de sua dupla com o Lanterna e parou por aí.

Barr se mostra um aficcionado pelos estertores da Era de Prata, conduzindo a história com uma pegada amadurecida daquele período. Só assim para explicar a participação, na reta final, de um vilão tão flamboyant quanto o Capitão Chibata (Cap'n Lash) – ao que consta em sua 1ª e única aparição, com a benção de Jack Sparrow.

Mesmo os eventuais roteirismos, como o fato de (quase) ninguém reconhecer o Oliver por trás de uma mascarazinha dominó e suas trocas de roupa mais rápidas que as do Billy Batson, parecem mais deliberados do que qualquer coisa. Para Barr, não havia nada a ser reparado – no máximo, ajustado – e absolutamente nenhuma Crise seria necessária...

...se é que ele sabia que viria uma muito em breve. E se sabia, passo a admirá-lo ainda mais pela audácia.

O traço de Von Eeden abraça a proposta com som e fúria. Esteticamente agradável, mas longe de oferecer uma narrativa visual comportada. O que não o impede de criar, com o nanquim contido e inteligente de Dick Giordano, instantâneos de sequência-espetacular-do-herói-em-ação.


Não canso de declarar meu amor pela splash page que abre a última edição. É um nirvana de fetichismo super-heróico.

Na maior parte do quadrinho, porém, Von Eeden é pura combustão. Seus entre quadros fluem do convencional ao fragmentado extremo, em sincronia passional com o texto. Em alguns momentos, a sequência de quadros é retorcida ao máximo, com a leitura se dando em modo reverso, tal qual um mangá. O artista, talvez ainda sob efeito de sua porralouquíssima série Thriller anterior, afunda o pé no acelerador sensorial e arrasta junto o leitor para a sua good/bad trip.

É um mestre. Um mestre difícil e caótico, mas ainda um mestre.


No final, após um confronto em alto-mar (com um cameo criminosamente curto da Canário Negro) e das reviravoltas na trama, uma singela cena com Ollie homenageando a memória de sua querida amiga. Sem tristeza ou ressentimentos, apenas amor e gratidão pelo tempo que passaram juntos. É um grande final e fico feliz por Abby nunca ter retornado de seu merecido descanso.

De certa forma, o fato deste recomeço ter sido descontinuado no éter protegeu a aventura das vicissitudes mundanas da indústria dos comics.

Um brinde a isto!

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

À mestra, com carinho

Steven Ringgenberg pens an obituary for one of the first women to draw superhero comics, with standout works throughout...

Publicado por The Comics Journal em Terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Excelente artigo sobre a carreira da Ramona Fradon pelo The Comics Journal. Os trechos sobre a sua passagem-relâmpago pela Marvel (e suas dificuldades com o "método Marvel") e como ela viu a darkinização das HQs nos anos 1980 são sensacionais.

E sigo embasbacado com a pouquíssima repercussão de sua partida entre as quadrinistas mulheres. Tirando as homenagens da Colleen Doran e da Gail Simone, que publicou um belo testemunho, a esmagadora maioria das condolências nas redes sociais é de quadrinistas homens. E olha que procurei.

Faltou respeito e sobrou alienação...

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Com amor, Ramona


Ramona Fradon
(1926 - 2024)

Se foi a legendária Ramona Fradon, do alto de suas gloriosas 97 primaveras.

Uma das maiores pioneiras dos quadrinhos da Era de Prata, embora sua carreira tivesse inciado já entre o pós-Guerra e o pré-Comics Code. Seu primeiro trabalho (não creditado) data de 1949, na Gang Busters #10, da DC. Afirmar que foi uma vida dedicada aos quadrinhos é pouco.

É uma peça fundamental para a representatividade feminina no mundo das HQs. Foi uma das primeiras quadrinistas a se destacarem no mercado mainstream, ao lado de June Tarpé Mills, Dale Messick, Trina Robbins, Marie Severin e de poucas outras corajosas desbravadoras. E numa época em que o machismo e as picaretagens das editoras com os artistas eram a lei.

Meu 1º contato com seu trabalho: Pequenina #9 - Homem-Borracha em Formatinho, da EBAL, lançada no mesmo mês e ano em que nasci. Certamente foi parar em minhas mãos por via de algum escambo com a molecada nos anos 1980. Foi paixão à primeira leitura. O traço cheio de movimento e levemente cartunizado trazia um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo e era impagável. Até hoje. É nítida a sua influência em artistas como Jill Thompson e Amanda Conner.

Fradon também co-criou o Metamorfo, o Aqualad original e a Fogo, a brasileiríssima Beatriz da Costa. Uma agradável honra a nossa.

Não dá pra dizer que foi exatamente uma surpresa. 75 anos de carreira, meu amigo (ela se aposentou no ano passado!). Fazendo o que amava e ainda mantendo o humor à toda prova.

Isso é incrível e maravilhoso muito além das palavras.


Thank you for everything, Ramona Fradon!